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Conheça "o guru intelectual" de Evo Morales.

Aos olhos de quem vê de fora, o presidente boliviano Evo Morales é um protagonista solitário. A história da chegada do ex-líder cocaleiro ao poder, em 2006, até hoje, quando acaba de assumir um terceiro mandato, é vista como conquista quase pessoal. Porém, se Evo chegou aos 61% dos votos da última eleição e tem a Bolívia hoje no caminho do crescimento econômico (5,5%) e na redução drástica dos números de pobreza, deve-se também ao carisma e mão-forte de um outro personagem, não menos carismático, polêmico, ousado e extremo. 

Trata-se do vice-presidente, Álvaro García Linera, 52, um dos principais líderes do processo que levou os movimentos indígenas a terem mais visibilidade e que formulou o socialismo à la boliviana. Um pouco de seu estilo midiático, de fala clara e envolvente, e de seu sorriso e afetividade diante das pessoas (inexistente no duro e retraído Evo) foi visto na última quinta-feira, durante a terceira posse consecutiva de ambos.

Nascido em Cochabamba, em 1962, García Linera é um legítimo membro da burguesia branca boliviana, com acesso a bons estudos e qualidade de vida. Apesar do lar católico e fechado em que se criou, sempre foi um grande leitor, interessado em leituras marxistas. Foi estudar no México, onde formou-se matemático pela Universidade Autónoma, uma das mais importantes da América Latina. Voltou à Bolívia e passou a dar aulas. As leituras marxistas misturaram-se às de autores que propunham o casamento do marxismo não mais com o operário urbano (como fazia o movimento, na Europa e na então União Soviética). Para García Linera, claramente inspirado na obra do peruano José Carlos Mariátegui (1894-1930), na Bolívia era preciso juntar marxismo com indigenismo, e transformar o indígena camponês no sujeito da revolução socialista. 

É preciso pensar que, nos anos 70, os indígenas não apenas dedicavam-se a trabalhos secundários nas cidades (serviços, limpeza) e davam duro na lavoura no campo. Para a elite branca das grandes cidades, eles eram vistos com desconfiança e medo. “Eu escutava as pessoas mais velhas, meus parentes, falarem do medo da revolta indígena, de quando se juntariam para nos atacar e tirar nossas coisas”, recorda García Linera em entrevista ao canal Encuentro, de Buenos Aires, no vídeo abaixo.

 

García Linera resolveu engajar-se diretamente na luta política. Em plena ditadura militar do general Hugo Banzer (1926-2002), passou a integrar os Ponchos Rojos, grupo de inspiração marxista-indigenista formado por habitantes dos altiplanos bolivianos. Depois, associou-se a um grupo de guerrilha, mais radical, o Tupac Katari. Foi preso ao integrar uma ação que destruiu torres de energia em La Paz. Acusado de terrorismo, ficou numa cadeia a 4.000m de altitude por mais de 5 anos, sem julgamento. Ali, passou a maior parte do tempo lendo e estudando sociologia. 

Ao sair, ainda mais radical do ponto de vista ideológico, García Linera voltou a atuar junto a grupos esquerdistas indígenas _então espalhados pelo altiplano e pela região das florestas. Conheceu Evo Morales quando este atuava e despontava como líder dos cocaleiros. Com imensa liderança local, Morales tinha grande capacidade de mobilização de seus seguidores, mas não possuía um estrategista político e intelectual. García Linera ocupou esse espaço de forma perfeita. Ofereceu a Evo sua envolvente oratória política, sua capacidade de negociação com outras forças, e um carisma mais abrangente que o de Morales. Enquanto o líder indígena é ensimesmado e contido nas suas demonstrações de afeto, García Linera tem sorriso cativante e não se inibe em abraçar e conversar largamente com os membros das comunidades que ambos visitavam. Também mais midiático, García Linera dá entrevistas longas nas quais gosta de embasar teoricamente suas posições, mas sempre através de casos anedóticos e didáticos. Mais aberto com relação à vida pessoal, ao contrário de Morales, cuja vida íntima se desconhece, García Linera não se esconde das câmaras. Em 2012, casou-se com faustosa cerimônia que contou com ritual indígena com uma conhecida apresentadora de televisão local, mais de 20 anos mais nova do que ele. 

Está longe, porém, de ser um político flexível, e sua visão de governo é de um autoritarismo nada camuflado. Defende que o país está vivendo uma transformação social, mas o mais importante é que as pessoas mudem seu jeito de pensar. “Precisamos passar por uma transformação cultural para que a direita nunca mais volte ao poder”, diz, na entrevista abaixo. A oposição, que tem pouquíssimo espaço para dialogar com o poder, é classificada por ele de “fascista e golpista”. São de García Linera, também, as máximas antiimperialistas que hoje se repetem pelas ruas de La Paz e que defendem o longo processo do qual faz parte. Tanto Evo como García Linera dizem que era necessário o terceiro mandato, apesar de estar proibido pela Constituição, e que foi autorizado pela Corte Suprema. Afirmam que é algo necessário para “dar continuidade a um projeto de mudança” que, segundo eles, apenas com eles é possível levar adiante. 

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García Linera foi também o artífice da nacionalização do petróleo e da saída dos EUA do combate ao narcotráfico, defende a regulação da mídia (inclusive da internet) e o alinhamento dos países latino-americanos governados pela centro-esquerda. Em entrevistas recentes, vem posicionando-se contra a Aliança do Pacífico (Colômbia, Chile, Peru e México), que vê como a formação de um braço aliado dos EUA na região, podendo transformar-se num braço militar. 

É muito comum que se veja a Bolívia dos dias de hoje apenas a partir da figura de Evo Morales e sua singular e polêmica trajetória. Qualquer análise desse período que despreze a figura de García Linera, porém, será rasa e profundamente incompleta. Ambos encabeçaram um projeto que vem tirando a Bolívia da pobreza e colocando-a num bom ritmo de crescimento. Por enquanto, de forma democrática. A tentação autoritária, porém, existe em ambos os personagens e tem chances de crescer num terceiro mandato que será bem mais difícil do que os dois anteriores _a desaceleração do Brasil, da Argentina e da China atingem a Bolívia de forma muito dura. 

Com mais de dois terços de apoio do parlamento, ambos têm a possibilidade de mudar a Constituição e justificar um quarto mandato. Seria uma péssima ideia. Afinal, a garantia de que os avanços dos últimos anos amadureçam e criem raízes de uma sociedade verdadeiramente próspera e livre depende do respeito às instituições. Se ferirem a democracia (alterando a Constituição) ou passarem por cima da separação dos poderes (há acusações de demasiada intervenção no Judiciário e uma reforma em discussão) correm o risco de diluir todos os avanços concretos, que de fato obtiveram, nos últimos dez anos.