"Compartilho ótima entrevista do Ministro Francisco Rezek, publicada, bem a propósito, na data em que comemoramos a Proclamação da República. No trecho reproduzido abaixo, o Ministro Rezek toca, com a clareza que sempre foi uma de suas marcas, em questão jurídica central do episódio do asilo concedido ao Senador Róger Pinto: o descumprimento da obrigação de conceder salvo-conduto. Lamentavelmente, alguns por aqui parecem querer desprezar esse aspecto. É sintomático do mal-estar gerado por esse descaso que o Senador Petecão tenha recentemente reclamado em Plenário do sucessivo adiamento da decisão do CONARE sobre a concessão ou não de refúgio ao Senador Róger Pinto.
Pergunta que não quer calar: se era para tergiversar tanto na concessão do refúgio, então por que deram asilo?
A demora do CONARE em conceder o refúgio e a "geladeira" imposta ao Itamaraty sobre servidores que se esforçaram em garantir o cumprimento do asilo soa quase como um pedido nada republicano de desculpas à Bolívia e legitima a recusa boliviana em conceder o salvo-conduto. É um péssimo precedente, pois recompensa a atitude reincidente de quem desrespeitou o Brasil (refinarias da Petrobras e outros tantos casos) e ainda se achou no direito de desprezar o instituto do asilo. Isso encoraja outras nações a acharem que o Brasil é um país que aceita ser maltratado com naturalidade como parte da sua política de boa-vizinhança e de reconhecimento de assimetrias no processo de integração. Quando cuidava do caso dos torcedores brasileiros presos arbitrariamente na Bolívia, cheguei a ouvir de alta autoridade boliviana, com quem fui expressamente instruído a tratar, proposta indecorosa - que refutei de plano - de que os torcedores se auto-incriminassem para salvar a face do judiciário local.
Espero que decisões sobre concessão de refúgio no Brasil nesse e em outros casos sejam guiadas pelo sentido de justiça não por paixão à comodidade ou em função do medo. Afinal, comodidade e medo, como desde criança bem soube o Ministro Rezek, são péssimos conselheiros". (Diplomata Eduardo Saboia, pelo Facebook)
O Mercosul anda tão lentamente quanto os realistas esperavam no momento de sua formação, em 1991. É com essa avaliação que, como ex-ministro das Relações Exteriores do governo Collor, Francisco Rezekrelembra das dificuldades que o bloco enfrentaria. Àquela época o Brasil sequer tinha uma moeda. Hoje, reconhece que os problemas da economia Argentina dificultam as coisas, mas mantém o otimismo — apesar das tensões políticas.
Nesta segunda parte da entrevista que concedeu à revista Consultor Jurídico [clique aqui para ler a primeira parte], Francisco Rezek se dedica ao Direito Internacional, área em que é doutor pela Universidade de Paris e deu aulas na Universidade de Brasília e Instituto Rio Branco. Depois de se aposentar no Supremo Tribunal Federal em 1997, em sua segunda passagem, atuou durante nove anos como juiz na Corte Internacional de Justiça, sediada em Haia (Holanda).Sobre as animadas relações do governo brasileiro com seus vizinhos da América do Sul, Rezek não poupa críticas à condução de nossa política externa e enumera episódios que classifica de “tropelias”. Apesar disso, reconhece acertos no âmbito global. Na questão imigratória, que tanto preocupa os países mais ricos, o ex-chanceler afirma que o Brasil tem condições de cumprir sua missão humanitária de receber a força de trabalho “de excepcional valor” que chega do Haiti ou de países africanos.
Leia a entrevista de Leonardo Léllis - ConJur
ConJur — Por que o senhor aceitou deixar o Supremo para assumir o Ministério das Relações Exteriores no governo Collor?
Francisco Rezek — Renunciei ao meu cargo vitalício no STF, onde estava já bem próximo de assumir a presidência, sem nenhuma expectativa de voltar ao tribunal. Simplesmente ocorreu-me que aquele cidadão eleito pelos brasileiros para a presidência da República não tinha partido nem equipe; e que um apelo seu, em tais circunstâncias, não podia ser desatendido se não fosse por comodismo, por apego à segurança ou por medo. Nunca tive paixão pela comodidade ou pela segurança, e nunca, nem mesmo na infância, tomei decisões em função do medo.
ConJur — Como o senhor avalia as mudanças na política externa desde então?
Francisco Rezek – O Brasil não fazia parte do grupo dos não alinhados nos anos 1980 e 1990, mas nós nos orgulhávamos de ser o menos alinhado dos países. Desde pelo menos o final do século XIX, a política externa do Brasil tem sido linear e coerente. O Brasil não se afastou dessa linha de conduta no plano global. O Brasil foi até mais firme no trato de determinadas questões relacionadas com as Nações Unidas, com a multilateralidade. Por menor que seja a minha simpatia pelo governo petista, e destacadamente pela pessoa de Lula da Silva, eu tenho um compromisso com a verdade e não posso esquecer que por ele foram pronunciadas algumas frases que considero das mais lúcidas no que tem a ver com a política externa global.
ConJur — Por exemplo?
Francisco Rezek — Ao cabo do genocídio que foi a campanha do Iraque, os autores resolveram dizer que as Nações Unidas, embora não tivessem participado, tinham um papel a desempenhar na reconstrução do país. Nesse momento, a voz do chefe de estado brasileiro disse que a ONU não foi criada para a tarefa de administrar as ruínas de uma guerra que ela não conseguiu evitar. Isso foi um ponto alto da nossa política externa. Também me sensibilizou muito quando Lula disse, a respeito da questão Palestina, que, por razões óbvias, os Estados Unidos não estão qualificados para a função de árbitro do conflito no Oriente Médio.
ConJur — Houve gafes?
Francisco Rezek — Sim, houve algumas gafes também no plano global, mas muito mais por defeitos da linguagem. Por exemplo: eu acredito na boa fé da presidente da República quando ela diz que, quando falou em diálogo a respeito da questão do estado islâmico, estava se referindo no diálogo entre os membros das Nações Unidas, pelo menos entre os membros do Conselho de Segurança. Acho desonesto alguém fingir que entendeu que ela se referia a um diálogo com o estado islâmico.
ConJur — E no plano regional?
Francisco Rezek — Bom, no plano regional, só tropelias. O desempenho brasileiro no caso de Honduras foi um vexame. Depois do impeachmentconstitucional do presidente Zelaya, motivado pelo projeto de reformar a Constituição para se perpetuar no poder, o Brasil resolve dizer que o considera legítimo governante de Honduras e que são golpistas o presidente do Congresso e os que estão exercendo o poder naquele hiato. Depois, diz que seria uma afronta ao Direito Internacional se retirassem o estatuto diplomático da embaixada do Brasil [onde Zelaya se abrigou]. Mas a quem o Brasil estava se dirigindo? Se aqueles que resolvem tirar o estatuto diplomático da embaixada mal utilizada não eram legítimos governantes, era aos golpistas que o Brasil se dirigia? Em mais de um caso relacionado com a Bolívia, quando o presidente Evo Morales desapropria o que é da Petrobras, o presidente da República e seu chanceler dizem que é preciso compreender esse gesto de soberania. Certamente não aprenderam o que é soberania e se esqueceram de que não podem dispor daquilo que não é deles, mas do povo brasileiro.
ConJur — Qual sua avaliação sobre o episódio da vinda do ex-senador boliviano Roger Pinto Molina ao Brasil? Havia questão de Direito envolvida, não?
Franciso Rezek — O Direito é claro com respeito a isso: concedido o asilo diplomático, era obrigação do governo boliviano oferecer o salvo conduto imediatamente para que o exilado diplomático se transformasse em exilado territorial no Brasil. Não era uma opção, era um dever. O governo boliviano não o cumpriu e o governo brasileiro fingiu que não era com ele. Abandonou o diplomata Eduardo Saboia até que ele conseguiu transportar o asilado diplomático e convertê-lo em exilado territorial no Brasil. Disseram que ele descumpriu ordens, mas não havia ordens nem poderia havê-las. Depois, não se poderia dizer que houve um transporte irregular do asilado ou algo assim. O salvo conduto não é um pressuposto da legitimidade do transporte do exilado para transformá-lo de asilado diplomático para asilado territorial. O salvo conduto é apenas uma garantia de que ele não será molestado pelos agente do governo até chegar na fronteira. Nesse caso, sem o salvo conduto, porque o governo boliviano ilegalmente se negava a concedê-lo.
ConJur — A inclusão da Venezuela no Mercosul também gerou fortes reações.
Francisco Rezek — Os quatro países fundadores do Mercosul precisam convergir para a admissão de um novo membro e o Paraguai, com as razões dele, era resistente a isso. Com o episódio Lugo, improvisa-se uma suspensão. O que aconteceu com o presidente Lugo, e ele próprio admitiu, foi um impeachment. Não havia nenhum direito para a OEA, ou para a Argentina, ou para o Brasil de fazer a crítica daquilo que se passou à luz do Direito Constitucional paraguaio. Usar este episódio para suspender de modo absolutamente ilegal o Paraguai e forçar o ingresso da Venezuela foi mais uma das grosserias da política externa regional da administração petista.
ConJur — Como o Brasil pode ser o líder regional que ele pretende ser?
Francisco Rezek – Uma liderança à base da cumplicidade com algo que não merece apoio não nos deveria interessar. Na medida em que se faça nesse clima, a liderança do Brasil é inteiramente lesiva ao interesse nacional. Vá lá ver se os demais países do continente aceitam uma liderança brasileira fundada na cumplicidade com a Venezuela, o Equador, a Bolívia, a Argentina...
ConJur – Acha que diplomacia brasileira é megalomaníaca nesse sentido, como já foi dito?
Francisco Rezek – Não. Pelo menos isso deve ser reconhecido: o governo brasileiro não tem um discurso de liderança. Aliás, todo líder que discurse a sua liderança deixa de ser líder. As atitudes apequenaram o Brasil, não tenho dúvida disso.
ConJur — O que deu errado no Mercosul?
Francisco Rezek — Esse episódio isolado do Paraguai é um incidente político, mas o Mercosul como integração econômica não deu errado. Ele apenas anda mais lentamente que os otimistas esperavam e tão lentamente quanto os realistas esperavam. Eu lembro bem de tudo aquilo que foi conversado na época entre os quatro chanceleres: Alexis Frutos, pelo Paraguai; o grande jurista Héctor Gros Espiell, pelo Uruguai; Guido di Tella, pela Argentina; e eu próprio pelo Brasil. Temos que conversar com contrição, temos que olhar para o chamado Pacto Andino e ver ali um modelo do que não fazer. O Pacto Andino tem corte de Justiça, tem secretarias, tem órgãos e não funciona. O Mercosul começou sem personalidade jurídica. Nossos interlocutores europeus, os burocratas de Bruxelas nos perguntavam: onde é a sede? Quem é o secretário geral? Cadê a corte de Justiça? Cadê do conselho? E nós dizíamos sistematicamente, e com toda firmeza, que não tem nada disso enquanto não começar a produzir algum resultado. E foi o que aconteceu. Hoje ninguém acha que deu errado e todos acham que as coisas estão andando devagar como imaginado.
ConJur – Mesmo com tantas diferenças econômicas?
Francisco Rezek – Quando o Mercosul foi fundado, nós éramos ainda um país sem moeda e esse era o meu maior motivo de aflição. A Argentina enfrenta suas dificuldades, mas esse cenário não é pior que aquele inicial.
ConJur – Mas as intervenções políticas não atrasaram o desenvolvimento do Mercosul?
Francisco Rezek – Não. As tropelias de índole políticas não prejudicaram o ritmo das coisas no que elas têm a ver com a economia, com os mercados, com o trânsito de bens e serviços e de pessoas. Sob uma ótica estritamente econômica, o ingresso da Venezuela não é um mal.
ConJur — O que falta para o Mercosul ser uma área de circulação efetivamente livre de mercadorias e não ter, por exemplo, a Argentina sobretaxando produto brasileiro...
Francisco Rezek – Se a situação econômica na Argentina fosse um pouco mais parecida com a nossa, do Uruguai ou do Paraguai, nós já teríamos andado um pouco mais. Hoje são as dificuldades da Argentina que obrigam o país a tomar certas medidas que são rudemente anti-integracionistas, para proteger o seu mercado. Não há dúvida de que dentre os fatores determinantes da desaceleração do ritmo de progresso do Mercosul está a crise que a Argentina vive há anos. Mas nós não podemos fazer nada, esse é o ponto.
ConJur — É justa a comparação com a União Europeia?
Francisco Rezek – As circunstâncias lá são outras. Apesar das desproporções territoriais e demográficas, eram países profundamente uniformes na sua estabilidade política, renda per capita, na igualdade de oportunidades... Além disso, havia um elemento de pressão política que eram os fantasmas da guerra. Os fundadores eram homens e mulheres de uma geração que enfrentou as duas guerras. A comunidade econômica europeia surgiu como uma iniciativa de integração econômica, mas com todo o estofo político possível de motivação. Nós não temos esse fantasma, nós não temos esse tipo de pressão. O objetivo principal da criação do nosso pretendido mercado comum não foi exorcizar fantasmas de guerra, foi realmente obter algum desenvolvimento.
ConJur — O senhor se arrisca a imaginar alguma data para que isso esteja funcionando de forma plena?
Francisco Rezek — Eu acredito que nos próximos dez anos nós teremos uma evolução positiva na Argentina. Não quero me arriscar a dizer que isso depende da queda do kirchnerismo. Mas eu acredito que, por um ou por outro caminho, nós teremos uma recuperação da Argentina e com isso o processo do Mercosul ganhará um alento extraordinário.
ConJur — A vinda de haitianos para o Brasil acendeu a discussão sobre a questão imigratória no país. Como o Brasil deve lidar com isso?
Francisco Rezek – Eu acho que nós temos espaço e recursos mais do que qualquer outro país para cumprir essa tarefa humanitária e acomodar essa força de trabalho. Esses imigrantes da crise haitiana, e também os imigrantes das diversas crises africanas, não são parasitas; eles são uma força de trabalho de excepcional valor. São pessoas bem formadas, competentes e que acrescentam muito ao esforço nacional de desenvolvimento. São o que poderíamos esperar de melhor em matéria de força de trabalho. Qualquer tentativa de fechar as portas eu vejo com extrema repugnância. Devem ser acolhidos com respeito.
ConJur – O que o senhor acha da ideia de uma Constituição global?
Francisco Rezek – Não creio nisso. É o que eu tenho falado nas minhas aulas de Direito Internacional, a essa altura, há mais de 45 anos. A sociedade internacional precisaria melhorar muito em qualidade para que nós pensássemos em construir um governo global, uma autoridade central, uma Constituição única. Isso é impensável se você leva em conta a qualidade das lideranças atuais, sobretudo daquelas que tem mais peso na balança do poder militar e econômico. Não dá para pensar em nada que não seja a preservação da identidade soberana daqueles países que ainda tem como se orgulhar das próprias identidades.
ConJur – Mesmo para temas específicos como meio ambiente ou negócios?
Francisco Rezek – Isso já vem acontecendo. É o que se chama universalidade dos direitos humanos. Essa universalidade contagia e projeta-se dos direitos humanos para alguns afins, como o meio ambiente e outros mais. Isso já vem sendo feito, mas não é, no essencial, uma governança global. É apenas o estabelecimento de regras tão uniformes quanto possível onde quer que se esteja dentro desse planeta.
ConJur — Por exemplo?
Francisco Rezek — Isso começou em 1919, na mesa de Versalhes quando se criou a Organização Internacional do Trabalho, que passa a ser a sede da legislação trabalhista para o mundo. As coisas se uniformizam e se aprimoram em qualidade. A partir do Direto Internacional do Trabalho passamos a ter uma porção de outras coisas: um Direito Penal Internacional, dos direitos humanos, do meio ambiente. Isso vai acontecer progressivamente, mas até que contagie o domínio político e possa fazer sonhar com uma constituição global vai uma distância que eu ainda acredito que é muito muito grande.
ConJur — Como fazer que os países cumpram decisões de tribunais internacionais?
Francisco Rezek — Sob a Corte da Haia, que é o que realmente importa, o Brasil nunca deixou de cumprir uma decisão, até porque ele só esteve envolvido num único caso. A questão era mais contábil do que jurídica; envolvia o cálculo de juros de alguns empréstimos que o governo brasileiro tomou de instituições francesas no comecinho do século XX. O Brasil foi condenado a pagar tal como a França pedia e cumpriu rigorosamente essa decisão.
ConJur — E os outros países?
Francisco Rezek — Todos cumpriram os acórdãos da corte. Duas únicas vezes o país condenado a pagar alguma coisa disse que, como o processo correu à sua revelia, não se julgavam no dever jurídico de cumprir a decisão. O primeiro foi a Albânia, no final dos anos 40, e depois os Estados Unidos, no caso Nicarágua. Até o caso do muro na Palestina, que um parecer consultivo, em resposta a uma pergunta feita pela Assembleia Geral da ONU, a Corte Suprema de Israel observou as definições em várias decisões que ela tomou nos anos subsequentes. Em São José da Costa Rica [sede da Corte Interamericana de Direitos Humanos] é que as coisas se complicam um pouco.
ConJur — O Brasil não suspendeu as obras de Belo Monte conforme pretendia a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, convocou o embaixador de volta...
Francisco Rezek — Alguns chamaram a reação de brutal. Todo mundo que tem a cabeça no lugar tem a consciência de que foi uma decisão absolutamente correta da presidente da República. Houve um ou outro autor, não necessariamente brasileiro, que fez timidamente alguma crítica à rejeição pelo governo brasileiro daquela determinação dos comissários de Washington sobre Belo Monte. Mas a não ser por isso, o Brasil tem cumprido as decisões.
ConJur — Mas todos os outros países têm essa obediência do Brasil?
Francisco Rezek — O Brasil só teve decisões proferidas contra ele pela Corte de São José porque ele se submeteu. Aí é outro tema tormentoso: fez bem ou fez mal? Isso foi no governo Fernando Henrique em 1998. Os países que se submeteram à jurisdição de São José da Costa Rica viram proferidas contra si algumas decisões, mas todas elas foram executadas, porque elas se resumem naquilo que realmente importa em indenizar, compensar, aquela pessoa, família, ou comunidade que foi vítima de um atentado aos seus direitos humanos.
ConJur — Qual é o arranjo que faz com que a Corte da Haia tenha todo esse prestígio? O que a diferencia da Corte Interamericana de Direitos Humanos?
Francisco Rezek — Poucos exploram esse tema, mas eu lhe dou essa explicação cristalina: a Corte da Haia não pretende se sobrepor a nenhum tribunal supremo que seja nacional. Ela só julga demandas entre estados soberanos e que jamais poderiam ser julgadas por um tribunal doméstico. São José da Costa Rica é um tribunal que, até mesmo sob uma ótica puramente teórica, pretende resolver problemas que já foram resolvidos. Por isso que é tão duvidosa a questão de se fizemos bem ou mal em nos submetermos em 1998
ConJur — Ela pretende se sobrepor à soberania?
Francisco Rezek — É bem isso. O Brasil tem sido obediente às decisões de São José da Costa Rica na medida em que elas não criam para nós um impasse político de alta seriedade, de alta gravidade. Embora seja essa a principal razão de eventualmente resistirmos como a presidente resistiu no caso Belo Monte à competência desse sistema. Ou seja, é uma coisa que concorre com a competência do governo local, do Congresso local e do Supremo local. Haia jamais concorreria com a competência doméstica de qualquer país. Os casos em que alguns países cogitaram seriamente ir contra o Brasil na Corte da Haia também jamais poderiam ser decididos pela Justiça brasileira ou pela Justiça do outro país.
ConJur — Quais foram?
Francisco Rezek — Honduras por causa do episódio Zelaya. O governo hondurenho cogitou seriamente de processar o Brasil pelo uso indevido do seu espaço diplomático com vistas a interferir na política local. Outro episódio é com a Itália, nesse caso pela conduta dos dois poderes: o governo e o Supremo no caso Battisti, quando o Brasil, violando o tratado com a Itália e sua própria Constituição, negou aquela extradição. Ou seja, o presidente negou e o Supremo contemporizou. Mas a Itália desistiu. Achou que não valia a pena entrar com um processa contra o Brasil por causa disso.
ConJur – Por que temos tanta dificuldade em investigar o próprio passado com as comissões da verdade? A Argentina e o Chile, por exemplo, conseguiram resolver isso antes.
Francisco Rezek – Eu não sei, talvez porque lá tenham priorizado mais esse tema, até porque sofreram muito mais. Eu acho que há certas dúvidas sobre a qualidade de algumas composições regionais das comissões da verdade. Mas não há a menor dúvida de que essa comissão, no plano federal, é da maior idoneidade.